quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Você é um Arquivo?



Eu costumo dizer que as coisas que me inspiram são as que fazem parte da minha vida. Honestamente, como minha vida se resume a incontáveis horas de trabalho na chibata e sofridos momentos de semi-solidão em uma faculdade em que desgosto de 90% dos alunos, meus papos ficam um pouquinho restritos entre trabalhar-estudar-trabalhar-estudar. Nem conto para vocês que agradável é desfrutar de minha companhia nesse período insólito.

Mas, o surpreendente mesmo, é quando você está em aula e recebe um texto que consegue juntar todos os seus medos e aflições do momento em uma só folha de papel ofício. Eu estremeci quando li pela 527ª vez o texto O Arquivo, de Victor Giudice. Os espasmos não brotaram do desconforto de receber o mesmo material didático desde o 1º grau, mas de, pela primeira vez na vida, compreender aquele texto por inteiro.

Vejam só, o texto de Giudice começa da seguinte forma:

No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.

joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.

Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.

Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.

Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.


Prosseguiu a luta.

Está entendendo o caminho que ele segue? Vai mais um trecho:

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.

O corpo era um monte de rugas sorridentes.

Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.

O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:

— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

João transformou-se num arquivo de metal.

Bom, preciso explicar. Não é tão dramático quanto parece, mas o estremecer ao ler O Arquivo foi gerado por esse medo, pequeno, mas crescente que existe no meu coraçãozinho de virar só mais uma peça do sistema. Eu não sei quanto a vocês, mas eu sempre quis ser um organismo vivo, um ser pensante em constante evolução e movimento. Acima do dinheiro, de uma forma tola e utópica. Mas, às vezes, penso que existe sim a possibilidade de me perder em um mar de burocracias, virar apenas mais um objeto, uma patrícia com p minúsculo, um qualquer coisa.

Parece bobo, mas a verdade é que refleti muito lendo esse texto. Depois do estremecimento, da análise pessoal e de buscar meu baú de desejos obscuros guardado no peito, juntei coragem para ser um pouquinho mais eu e não deixar minhas formas se desumanizarem. Sonhei de novo com projetos antigos, vi preços de cursos que sempre quis fazer, planejei a pós dos meus sonhos e comprei um anel novo. O anel foi só para marcar a mudança (e um pequeno surto de consumismo), mas o resto foi crucial pra salvar o pedacinho de mim que ainda acredita em... mim.

Bobeira, né? Mas, me fez bem. Porque, mesmo que nada disso aconteça, eu me lembrei, me senti bem e vou tentar ser um pouquinho mais Patsy. E, não se enganem, eu adoro dinheiro, não tenho uma visão de mundo fantasiosa. Mas, parando para compreender melhor você mesma e suas vontades, fica claro que ninguém além de você decide se vender. E, se isso acontecer, que seja uma escolha pensada, uma venda justa escolhida a dedo. Para se vender tem que valer à pena, financeiramente e emocionalmente.

E vocês? Almas vendidas, perdidas, utópicas ou revolucionárias? Algum arquivo de metal no recinto? Se alguma alma quiser conversar, mande um e-mail para patsy@corporativismofeminino.com :)

E, a quem interessar possa, eu não pedi demissão e fui viver de artesanato na praia hahaha mas meu pouco tempo livre vai ter mais projetos huhu.
E, a quem interessar possa 2, para ler O Arquivo na íntegra, clique AQUI.

Besos,

Patsy








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Postado por
Patsy


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